18/08/2025

Reuniões secretas e emails pessoais sustentaram fraude bilionária do ICMS, segundo MP

Por: Ana Paula Branco
Fonte: Folha de S. Paulo
Encontros presenciais, mensagens de WhatsApp, reuniões no Microsoft Teams
e trocas de emails. Assim, segundo o Ministério Público de São Paulo, o auditor
fiscal da Sefaz-SP (Secretaria da Fazenda de São Paulo) Artur Gomes da Silva
Neto manteve contato direto com empresários e executivos de grandes
varejistas para negociar, orientar e viabilizar um esquema de manipulação de
créditos de ICMS que teria movimentado cifras bilionárias.
Para a promotoria, Silva Neto atuaria como um coringa para as empresas,
fazendo desde a preparação dos arquivos digitais até a aprovação e a liberação
dos créditos ilegalmente, em valores muito superiores aos devidos, e garantindo
que não houvesse revisão posterior. Promotores desconfiam de que essa
garantia também facilitaria a venda dos créditos para outras empresas de forma
mais rápida e com menor desconto do que a média do mercado.
Na Fast Shop, ainda de acordo com a promotoria, os pagamentos eram
formalizados em contratos simulados, com transferências via TED para a Smart
Tax —empresa que tinha como titular a mãe de Silva Neto, Kimio Mizukami
da Silva, mas que era operada pelo fiscal da Fazenda.
Já na Ultrafarma, não haveria contrato nem emissão de nota fiscal, segundo a
investigação. Os acertos eram feitos por fora. No caso da empresa de Sidney
Oliveira, há a hipótese de que os repasses teriam sido feitos em criptomoedas
—Silva Neto, segundo os investigadores, teria mais de R$ 100 milhões em
bitcoins— ou por intermédio de empresas de terceiros.
A Fast Shop informa que está analisando o conteúdo da investigação. A
empresa diz que segue colaborando com as autoridades competentes. A
Ultrafarma não se manifestou, mas já informou, em outros contatos feitos pela
reportagem, que colabora com a investigação e que a marca segue
comprometida com "a transparência, a legalidade e o trabalho legítimo".
O advogado Arthur Fiedler, que defende Sidney Oliveira, diz que não pode
comentar porque "o caso corre em segredo de Justiça".
O advogado Paulo da Cunha Bueno, que defende Silva Neto, disse que a defesa
do auditor não vê argumentos fáticos ou técnicos para a manutenção da prisão
temporária e que irá demonstrar a inexistência de elementos no pedido de
liberdade provisória.
INVESTIGAÇÃO COMEÇOU COM PEDIDO DE MATO GROSSO
DO SUL
O ponto de partida para a investigação foi um pedido que promotores de Mato
Grosso do Sul fizeram para o MP-SP rastrear empresas ligadas a Celso Éder
Gonzaga de Araújo, suspeito de aplicar golpes bilionários em negócios de ouro.
A defesa de Araújo não foi localizada até o momento.
Antes de instaurar uma investigação, os promotores paulistas passaram a
verificar quais eram as empresas de Araújo em São Paulo. Dentre inúmeras
companhias, afirmam que duas chamaram a atenção: uma delas com capital de
R$ 3 bilhões —sendo R$ 2 bilhões integralizados por uma pessoa chamada
Kimio Mizukami da Silva, que até então não sabiam quem era; e outra, de
governança tributária, que tinha como sócia a Smart Tax —também fundada
por Kimio com o filho dela, Artur Gomes da Silva Neto.
Ao cruzar dados fiscais, o MP diz ter verificado que o patrimônio declarado de
Kimio, uma professora aposentada, havia saltado de R$ 411 mil, em 2021, para
quase R$ 2 bilhões em 2023, quase todo proveniente de supostos lucros da
Smart Tax.
Para os promotores, o salto patrimonial declarado por Kimio foi um deslize
difícil de explicar.
A defesa de Kimio não foi localizada até a publicação deste texto.
Até meados de 2021, a Smart Tax não teria atividade operacional, segundo os
investigadores. Depois, teria passado a prestar serviços multimilionários à Fast
Shop. Como Kimio não tinha formação acadêmica para prestar serviços de
assessoria tributária, a promotoria foi investigar o sócio original da Smart Tax,
Silva Neto, à época supervisor fiscal responsável pela fiscalização do setor de
varejo, comércio eletrônico e pelo ressarcimento de ICMS na Sefaz-SP.
Silva Neto era o diretor superintendente da Difis (diretoria de fiscalização). O
MP-SP afirma que ele usava o acesso privilegiado para "assessorar", de forma
clandestina, grandes empresas —entre elas a Fast Shop e a Ultrafarma— na
obtenção e aceleração de créditos de ICMS. Em troca, ainda segundo os
investigadores, Silva Neto receberia propina disfarçada de honorários pagos à
Smart Tax, empresa formalmente registrada em nome da mãe.
Na Ultrafarma, o proprietário Sidney Oliveira era pessoalmente copiado nas
mensagens, segundo os investigadores, e acompanhava o andamento dos
pedidos.
Para o Ministério Público, o caso tem um traço de ironia: um graduado em
engenharia no ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica), com mestrado na
mesma instituição e funcionário descrito como "brilhante", segundo os
investigadores, cometeu o que foi classificado como um erro infantil. A
declaração de um patrimônio bilionário em nome da mãe foi considerada por
eles uma demonstração de "arrogância ou excesso de confiança" de Silva Neto.


Para os promotores do MP-SP, Silva Neto tinha um cargo bastante relevante
na Sefaz-SP e acreditava que dificilmente seria punido. Até o momento,
ninguém da alta cúpula da secretaria está sendo investigado.
Em nota, a Sefaz afirma que as irregularidades apontadas na Operação Ícaro
são de 2021, anteriores à atual gestão Tarcísio de Freitas, que já havia
"identificado a opacidade dos processos e implementado mudanças".
"Desde o primeiro ano de gestão, no primeiro semestre de 2023, o servidor
envolvido nas denúncias deixou a função de supervisor da área responsável por
esse tipo de processo, data mais recente da última irregularidade apontada de
que se tem notícia até a oportunidade", afirma o comunicado da secretaria.
Em razão das denúncias, a pasta afirma que foi instaurado procedimento
administrativo disciplinar e constituído um grupo de trabalho para a verificação
fiscal de todos os pedidos de ressarcimento por parte das empresas
mencionadas.
O relatório de investigação do MP diz que o esquema pode ter sido replicado
com outras empresas, como Allmix Distribuidora, Rede 28 Postos de
Combustíveis e Oxxo. Nenhuma delas, porém, foi alvo da operação que
envolveu Ultrafarma e Fast Shop.
O advogado Fernando Dutra, que defende a Allmix Distribuidora, afirma que
não teve acesso ao inquérito e só está sabendo do tema pela imprensa. "Neste
momento não temos muito o que falar senão ratificar a transparência nas ações
todas da administração da Allmix e já deixar claro que a empresa colaborará
com todos os próximos passos da investigação", afirmou.
O Grupo Nós (representante do Oxxo) afirma que não conhece o conteúdo da
investigação e diz estar à disposição das autoridades competentes para, se
necessário, prestar esclarecimentos e colaborar nos termos da lei.
A defesa da Rede 28 Postos de Combustíveis ainda não foi localizada pela
reportagem.
Celso Éder Gonzaga de Araújo, que deu origem a todo o caso em Mato Grosso
do Sul, também foi preso no dia 12, suspeito de colaborar com a lavagem de
dinheiro de Silva Neto. Em sua casa foram apreendidos mais de R$ 1,2 milhão
e dois sacos de pedras preciosas, incluindo esmeraldas.
LINHA DO TEMPO TRAÇADA PELA OPERAÇÃO ÍCARO,
SEGUNDO O MP-SP
2013
· Artur funda, com a mãe, Kimio Mizukami da Silva, a empresa Smart Tax
Consultoria e Auditoria Tributária Ltda
· Pouco depois, ele sai formalmente do quadro societário, deixando a mãe
como única proprietária —uma professora aposentada, sem atuação no
setor tributário
2021
· Smart Tax altera seu objeto social para incluir "consultoria e auditoria
tributária"
· Teriam início as comunicações informais entre Silva Neto e executivos
da Fast Shop usando email pessoal e mensagens de celular, segundo a
promotoria
· O auditor começaria a orientar diretamente a empresa sobre
ressarcimento de ICMS-ST (portaria CAT 42/2018)
· Kimio declara patrimônio de R$ 411 mil
2022
· Silva Neto passaria a elaborar e compilar documentos para a Fast Shop,
revisar contratos de cessão de créditos e atuar dentro da Sefaz para
acelerar deferimentos, aponta a auditoria
· Primeiros pagamentos da Fast Shop para a Smart Tax, registrados como
honorários
· Contratos seriam assinados digitalmente pelo próprio Silva Neto, usando
o certificado digital da Smart Tax
· Kimio passaria a guardar valores expressivos em espécie, segundo a
investigação
2023
· Teria sido fechado acordo entre Fast Shop e Smart Tax, prevendo R$
204,6 milhões a serem pagos em 11 parcelas, com média de R$ 65
milhões anuais
· Artur orientaria empresas sobre códigos fiscais para notas e protocolos
de pedidos de crédito
· Segundo o MP, o mesmo esquema era negociado com Ultrafarma,
Allmix, Rede 28 e Oxxo
· Kimio declara patrimônio de R$ 2 bilhões, majoritariamente em
criptomoedas adquiridas com lucros da Smart Tax
Início de 2024
· Reuniões presenciais e virtuais entre Artur, diretores da Fast Shop e
representantes da Smart Tax continuariam
· Artur manteria o controle operacional da empresa de fachada e o acesso
aos tokens das companhias clientes
· Emails revelariam a preparação de pedidos e instruções detalhadas para
evitar questionamentos da Sefaz-SP
Dezembro de 2024
· Reunião de "alinhamento" entre Silva Neto, Mário Otávio Gomes
(diretor da Fast Shop) e uma coordenadora fiscal da varejista, sem a
presença de Kimio
Primeiro semestre de 2025
· Ministério Público aprofunda investigação após quebra de sigilos fiscal,
bancário e de emails e mensagens (telemático)
· MP avalia que as práticas criminosas permanecem ativas
· Provas incluiriam contratos, emails, planilhas de pagamentos e
orientações tributárias de Silva Neto a empresas privadas
Julho de 2025
· Com base no risco de os crimes continuarem e nas evidências de
corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa, o MP solicita a
prisão temporária de Silva Neto, Sidney Oliveira (Ultrafarma) e Mário
Otávio Gomes (Fast Shop)
· Também é requerido o afastamento de funções públicas de Silva Neto e
de outro auditor fiscal, Marcelo de Almeida Gouveia
· Procuradas, as defesas de Mário Otávio Gomes e de Marcelo de Almeida
Gouveia não responderam
Agosto de 2025
· Dono da Ultrafarma e diretor da Fast Shop são presos temporariamente
na Operação Ícaro, no dia 12
· Na casa de Celso Éder Gonzaga de Araújo e de sua esposa, Tatiane, são
apreendidos mais de R$ 1,2 milhão e dois sacos de pedras preciosas,
incluindo esmeraldas, segundo o MP. O casal é acusado de colaborar na
lavagem de dinheiro e também é preso. A defesa de Tatiane não foi
localizada até a publicação desta reportagem
· Sidney Oliveira e Mário Otávio Gomes são soltos no dia 15, após a
Promotoria decidir não ampliar o período das prisões temporárias dos
empresários, sob fiança de R$ 25 milhões e com uso de tornozeleira
eletrônica
· A Justiça decidiu manter as prisões temporárias dos dois fiscais